Antes de 1838, só era possível encontrar calopsitas em um lugar. A ave pequena e topetuda, menor membro da família Cacatuidae, é nativa da Austrália e vivia apenas pelas savanas abertas e pelas regiões semi-áridas da Oceania. A presença do gracioso pássaro fora do continente só aconteceu depois que o naturalista inglês John Gould foi se aventurar com a família por aquelas terras, carregando aves “exóticas” para estudar na Europa. Ao lado de sua esposa Elizabeth, talentosa colorista e ilustradora que morreu muito jovem e não recebeu o devido reconhecimento pelo seu trabalho na arte e na divulgação científica, John passeou por belas paisagens observando, fazendo registros e desenhando cerca de 600 espécies que foram catalogadas no livro The Birds of Australia, publicado entre 1840 e 1848.
Só nesta viagem John Gould registrou 328 aves que ainda não eram muito estudadas pela ornitologia, incluindo a calopsita. Apesar de divertidas e cantantes, as calopsitas não fizeram o inglês bater asas com empolgação: ele passou mais tempo de sua vida interessado nos colibris do que em qualquer outro pássaro que tenha encontrado nas expedições asiáticas ou mesmo no Reino Unido, onde foi morador de longa data. Não é para menos. Poucas coisas são bonitas como ver um beija-flor pairando no ar com seus bicos finíssimos e suas asas ágeis.
Gould só foi pôr os olhos em um beija-flor de verdade quando veio para as Américas com Charles – o segundo dos oito filhos que teve com Elizabeth –, onde pôde apreciar a menor ave do mundo nos Jardins de Bartram, na Filadélfia. Foi embora dizendo que era um deleite admirar um corpinho tão pequeno e uma plumagem tão cintilante, tentou levar consigo algumas espécimes, mas sem saber das condições necessárias para mantê-las vivas, os animais acabaram não sobrevivendo.
Beija-flores não gostam dos ares da Grã-Bretanha, mas aves mortas não eram mau negócio naquela época: a sociedade inglesa vitoriana do século XIX era obcecada com taxidermia. Os símbolos de riqueza e excentricidade da época não eram um carro Tesla ou uma coleção de NFTs, mas sim um gabinete de curiosidades repleto de pássaros, insetos e outros animais empalhados, eternos enquanto dure a taxidermia.
As calopsitas, ao contrário dos frágeis beija-flores, se adaptam bem a qualquer ambiente e começaram a ser tratadas como aves raras por nobres colecionadores da Europa, que adoravam tópicos naturalistas e tinham grande entusiasmo com ornitologia. Do lado de cá do Atlântico, menos ciência como status social e mais pais de pets. Calopsitas começaram timidamente a chegar ao Brasil para serem animais de estimação na segunda metade do século XX, e desde a década de 1970, tornaram-se a ave doméstica mais vendida no país. Fazem por onde: são pássaros simpáticos, interagem bem com humanos (especialmente crianças e idosos), são dóceis, algumas têm bochechas cor de cheddar extremamente fofas e ainda tem penteados arrasadores, algo entre o Supla e a Ana Maria Braga.
As aves ficaram famosas praticamente juntas com o cantor e compositor cearense Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes. Belchior nasceu em uma família numerosa em Sobral, no sertão nordestino. Primeiro quis ser padre, depois médico, mas acabou se juntando a outros artistas da região, o Pessoal do Ceará. Saiu do Nordeste e se mudou para São Paulo, escreveu várias indiretas para o Caetano Veloso e cultivou uma coleção de brigas com o Fagner, que sempre conta que o auge da desavença entre eles foi por causa um casaco na casa da Amelinha – mas prefiro a versão protagonizada por um pastel de feira esquecido na geladeira que iniciou um duelo de facas no zona sul do Rio. Só anos depois gravou álbuns aclamados e ficou mais popular do que o Rei Mago Belchior, que não vendeu 300 mil cópias de Alucinação para ganhar discos de ouro.
Os cantos de Belchior nada se parecem com os dos pássaros, o que não impediu que seu nome também servisse para batizar uma Nymphicus hollandicus de cabeça amarela e penas cinzas escuras no Centro-Sul de Belo Horizonte, terras distantes das exploradas por John Gould. Segundo seu perfil na rede mundial de computadores, o Belchior pássaro é grande fã de banhos na pia para refrescar os dias quentes, cochilos no meio da tarde e degustação de angu – seu prato favorito. O nome, no entanto, não passou ileso e ditou o destino da ave como se fosse uma sentença: de tanto observar o mundo pela janela enquadrada, o Belchior pássaro decidiu fazer como o cantor e desaparecer por uns tempos, seguir em busca de um exílio artístico na Argentina ou no Uruguai. John Gould nunca ousaria, o pessoal do Ceará não sonharia, que anos depois da sua morte em 2017, Belchior fugiria do seu apartamento no Barro Preto para ser visto pela última vez na copa de uma árvore na Rua Juiz de Fora.
As maritacas nunca tiveram a mesma sorte das calopsitas. São somente aves sem parentes importantes que não nasceram em continentes longínquos, tampouco foram estudadas por amigos de Charles Darwin na Inglaterra Vitoriana. Gostam de ficar por aqui mesmo, sobrevoando o território brasileiro, procurando por lagos para se refrescar, de olho em sementes para abrir com o bico curvado ou mangas maduras e suculentas nos dias mais fartos. São sociáveis e andam em bandos grandes, mesmo quando não estão reproduzindo. Não cantam melodicamente como as calopsitas, mas gritam que é uma beleza. Não foram nomeadas por causa de um rei mago, mas conservaram o nome que receberam em tupi por serem ruidosas e barulhentas. Quando encontram um lugar para pernoitar, berram antes de adormecer e depois anunciam sua partida assim que a manhã chega. Querem despertar toda vizinhança junto – há tempos não uso o alarme do celular graças ao bando que dorme na árvore logo abaixo do meu quarto.
Se abro a janela e forço bem os olhos pelos buraquinhos de um binóculo, consigo avistar uma cauda curtinha e acinzentada escondida no meio da amendoeira onde as maritacas se camuflam entre folhas vibrantes. O bando aparentemente aceitou bem a presença de um invasor cantarolante, que se uniu à revoada cada vez mais afinada no amanhecer. Cansado de gritar do oitavo andar quando o carro passa, sou eu, sou eu, Belchior pássaro deve estar à procura de um tucano com cara de Fagner que têm sobrevoado a região para tirar satisfação sobre um tal disco comemorativo ou tentando ensinar aves estridentes a assobiar Paralelas. Deixou a solidão do apartamento para experimentar a vida selvagem das maritacas, apenas aves latino-americanas, fazendo jus ao outro de seu nome.
Apenas um grande PUTA QUE PARIU
Será que esse tinha parentes importantes e dinheiro no banco?