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Ainda criança, aprendi hábitos preciosos com meus avós, com quem eu fazia refeições com muita regularidade. Depois do almoço, independentemente do quanto você tenha comido, a sobremesa é de ingestão obrigatória. Não precisa ser farta: bastam quatro pequenos figos em calda, uma casca de laranja cristalizada ou um pedaço modesto de rapadura. No pós-refeição, cada um seguia seu caminho: a avó assistia televisão e tecia, o avô ia tirar um cochilo. Quando estava por lá, minhas preferências eram variáveis: às vezes queria observar e tentar entender como um amontoado de linhas e cores viravam colchas, blusas, colares e quem sabe ganhar uma roupinha nova para as bonecas. Mas quem mais me conquistava era a vontade de uma boa soneca. É claro que o sono não vinha de primeira para uma menina inquieta: só adormecia ao escutar uma boa história – por sorte, tinha um ótimo contador de causos à minha disposição. Agora não recordo mais as narrativas exatas de nenhuma das aventuras que embalavam meus sonhos, mas lembro de uma história sobre uma formiga que queria cruzar uma montanha, meramente ilustrada pelas vértebras das minhas costas miúdas. Queria poder dormir depois do almoço e escutar contos mais vezes.
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Numas manhãs atrás comecei a reparar em rastros de formigas atravessando os azulejos reluzentes da minha cozinha. Partem da parte de trás da tomada onde acendo a chaleira elétrica e seguem uma marcha curva rumo a um lugar que não faz sentido para mim. Enquanto preparo o café, os insetos formam uma linha segmentada, um desenho que parece a carcaça de uma montanha cujo relevo não identifico. Algumas formigas param no meio do caminho, se encontram em um ponto aleatório, parecem fazer uma fofoca e depois voltam seus rumos. Me pergunto se são as mesmas que me acompanham todas os dias. Conseguem perceber as mudanças do meu humor de acordo com o modo como preparo ovos mexidos, se estou alegre ou decepcionada pela forma que tosto uma fatia de pão? Às nove, a quantidade de formigas que cruzam o quadrante branco já diminui significativamente, praticamente somem. Não sei dizer o que as formigas da cozinha fazem no resto da tarde e pela noite nas proximidades das prateleiras. Quase nunca estou por perto e posso observar.
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Com a ajuda de uma foto borrada com muito zoom no celular, consigo descobrir que aquelas são formigas-doceiras. A enciclopédia das formigas – Antwiki, caso possa interessar – me diz que são uma das espécies mais presentes no planeta e estão por toda parte. Marcam presença em todos os continentes, menos na Antártida. São eussociais e vivem juntas, como vivem as vespas e as abelhas, e de fato, nunca encontrei uma formiga solitária na cozinha. Gostam de se alimentar de doces, e mesmo tendo esquecido um pote de mel entreaberto, preferem se esbaldar nas paçoquinhas que sobraram do meu último aniversário. A ciência, a mirmecologia – palavra que também aprendi na Wikipedia – e as 22 mil espécies de formigas que habitam o mundo até me despertam curiosidade, mas minha imaginação logo se dispersa com a ideia de que uma formiga-doceira poderia muito bem ser uma personagem que passa tardes e tardes na beira de um fogão transformando leite em doce, com um tacho gigante e um pano de prato pendurado no ombro, como minha avó fazia enquanto eu escutava histórias sobre artrópodes que queriam cruzar serras desconhecidas.
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Não aprendi a cozinhar com a minha avó. Meu interesse pelo preparo de comidas e o desejo de descobrir receitas de família veio tarde demais. Quando lembro de gostos específicos, recorro à memória da minha mãe para tentar recuperar alguns sabores: o segredo do sanduíche de frango, o formato do biscoito frito, a mágica do bolo de duas cores que parecia mármore lapidado. Minha predileção pelos doces depois do almoço não prevaleceu. Hoje gosto mais de folhas amargas e frutas azedas e meu corpo só pede por doses elevadas de sacarose em momentos específicos do mês. Os cristais granulados de cana sempre estão em falta nos meus potes – deve ser por isso que as formigas seguem os trilhos das paçoquinhas. Ontem assei um bolo de limão com amoras, generoso em açúcar (tive que comprar um pacote), que repousa desde a noite na bancada. Os insetos se agitaram um pouco mais esta manhã, formando uma montanha diferente, de contornos instáveis e mais velozes. Eu também ficaria assim se não tivesse provado uma fatia. Se frustraram ao encontrar uma redoma protegendo minha guloseima. Acho que minha avó gostaria da receita do bolo, das histórias e das formigas. Esta noite, vou reparar nelas.
❤️
que maravilha te ler, Nina <3