Conheci Sandra no salão do bairro. Dividimos o mesmo CEP, mas ela atesta com fé que nunca me viu nas redondezas, com certeza saberia. Enquanto espera secar as unhas do pé, me pergunta se não costumo sair por aqui. Digo que é o contrário e ela desvenda o mistério: não gosta dos bares da região. Todo mundo já a conhece e fala demais sobre o que sabe de menos. Corpulenta e grisalha, com os cabelos ainda mais curtos que os meus, prefere não frequentar os botecos locais. Cansou de cerveja, prefere outros drinques. Não tem muita paciência para provar ou inventar novas combinações, estar sujeita aos erros. Opta pelas opções prontas, ao alcance de suas unhas vermelhas escarlate na gôndola do supermercado. Seu favorito é o gim tônica. Uma pena que a bebida é uma verdadeira carnificina. Uma sorte: a carnificina combina com seus pés e mãos, impecavelmente bem pintados.
Dona Maria, que diz que é Maria de Nada, sem Dores ou Graças, aproveita o feriado para fazer compras em horários pouco usuais na padaria do bairro. Usa estampas coloridas que não combinam entre si e uma tiara vermelha de veludo para segurar seus cabelos tingidos. Sua alegria em estar viva é conciliar as saídas à procura de pães frescos com o momento exato em que o padeiro troca as massas frias, cansadas da espera no balcão, por baguetes novas e quentinhas. Um acontecimento célebre depois dos 70 anos, afinal, só pode ser testemunhado por quem está vivo. Comemora feliz que esse é seu caso, diferente das 300 mil pessoas que morrem todos os dias pelo mundo, de acordo com dados que ela mesma apanhou. Segundo seus cálculos, mil delas morrem dormindo, tornando impossível o prazer do pãozinho quente logo no amanhecer e nas horas sortidas do dia.
Na lanchonete que toca com uma amiga, Jussara serve todo tipo de refeição a qualquer hora do dia: pratos feitos, caldos e salgados embebedados na gordura. O movimento é grande nos embarques e desembarques da rodoviária, mas para as demais longas horas do dia é preciso de um bom antídoto para o tédio que nem mesmo as maiores fofocas do mundo são capazes de afastar. Para ajudar com o caminhar lento do relógio, instalou uma televisão onde pode explorar à vontade o acervo musical do YouTube. Apesar da infinidade de canções disponíveis, não costuma mudar. Por trás do caixa onde pergunta aos clientes qual a forma de pagamento, ela sintoniza as mesmas listas e o algoritmo da plataforma a conduz sempre para as mesmas canções emocionadas. Ela promete que está tentando se converter, escutar mais louvores e parar de chorar por amor, mas a TV já se acostumou: só sabe tocar Pablo de manhã, de tarde e de noite. Da chapa ao lado, a colega avisa que a dita tentativa é mentira total, mas Jussara tem prontidão para fazer sua defesa: a sofrência ajuda todo e qualquer mal.
Um homem mais velho se aproxima de uma senhora enquanto ela espera o ônibus para a área hospitalar: é dia de apresentar resultados de um exame ao médico e aproveitar a viagem para resolver burocracias de rua. O ponto semi-vazio é a deixa para que ele aproveite o espaço e invistir em todo tipo de conversa aborrecida. Aonde vai arrumada desse jeito? Tá mudando de bairro? Então porque nunca mais te vi por aqui? Terminou as sessões de fisioterapia? Tem saído pouco? E os netos, quando vêm visitar? O que vai fazer na volta da consulta? Impaciente, ela avisa que seu dia está tomado. Vai para a aula de zumba e ainda é época de sacar a aposentadoria na Caixa Econômica. O senhor pergunta, com certo interesse, se o benefício é superior a dois salários, pois a soma das rendas poderia trazer conforto e algumas regalias para os dois. O que salva a dona do flerte ruim é o circular que se aproxima. Pegamos a mesma linha, e, antes que a catraca separe nossas viagens, ela comenta a indelicadeza do vizinho, que tem a pertubado com insinuações desde que ficou viúva. Às vezes a incomoda, às vezes ela só ri da falta de tato: se quisesse um novo marido, procuraria na Internet, e não no ponto de ônibus.
Junia roda Belo Horizonte durante seu expediente buscando e deixando passageiros em um Voyage prateado de 2018. Sua função é anunciada pelo letreiro eletrônico luminoso colado no vidro, mas seu sorriso metálico fica sempre coberto por uma máscara de tecido escuro. Depois de certo horário, só aceita carregar mulheres. Para sua própria segurança, ela diz, mesmo sem ter muitas garantias — nunca se sabe quem vai entrar no banco de trás. Com o celular fixado no painel de seu veículo e um fone de ouvido conectado ao aparelho, conversa com o namorado que dirige em outra regional e sofre com a falta de corridas em um dia parado. Junia não gosta de dias assim. Prefere ver vida nas ruas, bares iluminados, vias barulhentas. Enquanto conversa com seu amor, se distrai e confunde a entrada do viaduto. Passeamos pela cidade vazia até que ela possa acertar o caminho.
Amo seus textos <3
Primeiro texto seu que eu leio. Amei! Que bom te conhecer. <3