Conheci Juninho no fim de uma manhã quente, durante um passeio de bicicleta na Avenida dos Andradas. Uma avenida que foi feita pra ligar uma praça a uma avenida, mas cresceu mais do que deveria, como quase tudo que diz respeito a essa cidade. Ali tem rio escondido, rio a vista, rio que quase sempre se rebela e faz questão de manifestar.
Penso na Andradas toda vez que olho minha perna esquerda e vejo a cicatriz que teima em permanecer depois de uns anos. Um lembrete do azar quase ridículo de quem se distrai com paisagens bestas demais. Faz parte da cidade e agora, também faz parte de mim: uma extensão de pouco menos que oito quilômetros de passarela, viaduto, trilho, mato, asfalto, bicho e gente. Podia estar em qualquer metrópole, mas tá ali: do centro a Sabará.
A via guarda os segredos das águas e os segredos de gente. Um tanto bom de resquícios de uma cidade que não conheci, histórias que se revelam quando a gente consegue perceber os cenários absurdos possíveis em Belo Horizonte. O cristão que faz caminhadas na pista de corrida lendo a bíblia, um porco passeando de coleira, perseguição de moto, horta improvisada na ribanceira do rio, os prédios mais feios do perímetro urbano, o atleta que treina correndo de trás pra frente.
Gosto particularmente de ter conhecido o Juninho ali, no seu oásis em meio ao asfalto quente da avenida. Ele apareceu diante de mim, em busca de uma refeição enquanto parei para um descanso. O danado era inteligente, de bico fino. Não queria saber de moscas ou pequenos insetos. O réptil deu sorte na vida e encontrou um cúmplice: o vendedor de cocos que há 32 anos estaciona sua kombi numa das encruzilhadas da Andradas, negociando com transeuntes o elixir da alegria em forma do suco de fruta.
Juninho e ele firmaram o acordo não verbal de trocar alimento por companhia nos horários de baixa movimentação. Ninguém quer esturricar na Andradas no sol do meio dia. Certa vez minha sorte ou meu atraso me colocaram de frente com esse lagarto, o réptil mais privilegiado de Belo Horizonte e região metropolitana. Na falta de clientela, é Juninho quem ganha a parte mais preciosa do coco: a polpa carnuda, geladinha e macia que só se revela diante de um corte certeiro. Seu comparsa faz de tudo para facilitar a sua vida: molda a polpa com um canudinho pra oferecer porções fracionadas. Juninho se esbalda com as bolinhas de coco. Nunca vi um calango tão feliz — e sempre vejo muitos calangos pelas redondezas.
Pro meu azar, os horários de Juninho não são muito compatíveis com os meus. Continuo esbarrando com carroças e as moitas de flores alaranjadas se confundirem com a paisagem da metrópole, mas não o via há um tempo. Recentemente, pedi notícias dele por aí. Escutei do seu parceiro que o calango não é visto varrendo a barriga há um tempo.
Enquanto Al Green cantava Let’s Stay Together em uma caixa de som estourada, o vendedor abria cocos com suas facadas fatais e me contou sem hesitar: Juninho deve ter virado almoço de algum cachorro por aí. Sua ausência é até sentida, mas não causa muita comoção. Do mesmo jeito que existem domadores de crocodilos, também há de ter domadores de calangos, ansiosos para aprenderem a apreciar coco verde tão bem quanto o saudoso lagarto.
tanta coisa bonita num texto só: contexto social e político da cidade, a escolha das palavras, a história dessa Avenida.... você é incrível!
perdi tudo com a imagem final. AMEI. Juninho pra sempre em nossos corações <3