Começo a pensar nelas depois que os ovos que restam na geladeira se tornam a omelete do café da manhã. Quando vou ao supermercado em busca do reabastecimento, me encontro diante do delírio consumista-existencial bem no alcance das prateleiras. Me vejo obrigada a julgar qual estilo de vida que as galinhas que botam os ovos que me alimentam devem ter. Alimentação orgânica ou ultraprocessada, mas suplementada com Ômega-3? Criação livre, com direito a passeios no campo ou uma vida restrita às gaiolas?
Pondero que a escolha não deve ser minha. Quem sou eu pra julgar? Entro em contato com o Sindicato das Trabalhadoras Galináceas. Me apresento como uma curiosa que busca entender melhor o modo de vida das aves ovíparas e os seus indicadores de qualidade de vida, para só assim decidir o que devo consumir. Sou atendida por um simpático Peru-Selvagem, que prontamente se oferece para mediar o meu contato com Galinhas Poedeiras.
Converso com uma Pedrês, que parece empolgada com a possibilidade de mostrar de perto como vive. Me animo com a chance de enfim descobrir a verdade. Pergunto se é como dizem nas embalagens, onde consta que as galinhas são trabalhadoras felizes e conscientes. É melhor que nos falemos pessoalmente, ela me diz. Aguardo ansiosa pelo nosso encontro e em alguns dias chego à Fazenda Mundo Feliz. A cor verde vívida dos pastos, a comida orgânica, aves de diversas espécies voando livremente, a princípio, impressiona. Mas não estou ali para ser iludida nem enganada. Na cidade já tem gente suficiente desempenhando este papel.
Zanzo pelos poleiros e faço as perguntas que me são mais caras: como calcula-se o IDH de um galinheiro? Quem determina os indicadores? A alimentação não-transgênica é padronizada ou rola deliveries clandestinos vez ou outra? Escuto a mesma resposta padrão, somos muito felizes aqui. Galináceas praticamente treinadas para esconder a realidade me deixam muito perto de largar tudo e pegar os primeiros ovos que aparecem na minha frente sem me preocupar com mais nada, mas insisto.
Dou mais uma volta, agradeço a visita, ameaço partir quando uma Barrada se aproxima e abre o bico falando baixinho: acredita que no galinheiro não existe direito à reclamação? A declaração me abala. De que adianta um bom emprego, um bom lar, benefícios trabalhistas se não existe espaço eventual para um ou outro lamento ranzinza?
Como ficam as galinhas mal humoradas, que não querem passear no campo, nem dar rolês fora do galpão? Quem não gosta de milho crioulo, vai comer o que? A Barrada lembra de uma Galinha Gótica que passou uns tempos no Mundo Feliz. A última coisa que teve foi felicidade. Usava preto da crista à última pena, até seus ovos eram escuros como as maquiagens do Robert Smith. Não gostava de conversar com as companheiras de gaiola, escutava Bauhaus o dia inteiro, reclamava que o ar limpo das montanhas aumenta a expectativa de vida demais e logo iniciou uma greve de uma galinha só: não botaria nem mais um ovo a não ser que ganhasse uma suíte individual de 15 por 20 centímetros para escutar rock triste e viver sua rabugice em paz.
Já era de se esperar que o baixo astral da ave não fizesse sucesso com as demais colegas alegres de galinheiro. Coibidas pela nuvem cinzenta instalada sob a crista de cada uma, começaram a experimentar estresse, mágoa e confusão. Não demorou para que ciscar o chão e abrir as longas asas ao vento perdesse um pouco de graça. As galinhas começaram a emagrecer, pararam de botar, não sorriam mais. Algo precisava ser feito.
Tentaram conversas informais, entraram em contato com uma Codorna com interesses em psicanálise, mas a Galinha Gótica se recusava a falar. Entrou em voto de silêncio por oito dias. Tentando aproveitar o apreço por música, o galinheiro se uniu para criar uma playlist com Happy do Pharrell, Earth, Wind & Fire e Beach Boys. A Galinha Gótica disse que preferia ser surda. Sugeriram yoga, meditação, palestras da Monja Coen, maratona de Os Trapalhões e até a equivocada ideia de uma barra de chocolate. Todas ideias rejeitadas.
Antes de apelarem para constelação familiar, decidiram parar de insistir e partir para soluções mais definitivas. Nada teve mais efetividade do que chamar um Mura para uma ‘conversa’ um pouco mais intensa, para resolver, no sigilo, a questão da felicidade local. O galo de rinha acabou se empolgando e o destino da Galinha Gótica foi cravado a duras penas. O IDH do Mundo Feliz pulou de 9,2 a 10 mais uma vez e agora, sempre que estou no supermercado, procuro por ovos negros perdidos nos pentes, sonhando com o dia em que mau humor e a revolta sejam direitos básicos de todos — inclusive das galinhas.