Luiz Signorelli e Rafaello Berti projetaram o prédio da sede da prefeitura de Belo Horizonte na Avenida Afonso Pena quando a capital mineira ainda não era a cidade expandida e vertical que é hoje. O edifício, construído em 1935 em uma das principais vias da cidade, marca um estilo único que transita entre o neoclássico e o art déco e um dos seus detalhes mais chamativos é a torre alongada que guarda em seu topo quatro relógios, instalados em 1937. Cada um voltado para uma regional. Quase uma torre de Gotham City. O belo-horizontino de qualquer bairro precisaria sempre de uma boa desculpa para se atrasar.
Há alguns meses, a cidade parece estar parada no tempo. Com a queda do relógio do Edifício JK e a retirada das placas digitais que informavam hora e temperatura em cada esquina central, restam poucas opções para quem não gosta de relógios de pulso ou prefere não correr o risco de ser furtado em plena Praça Sete. A população, que antes podia contar com os ponteiros clássicos e os algarismos romanos do relógio da prefeitura para se orientar, desde 2019 não tem mais essa possibilidade: por desgastes e falta de manutenção, cada um dos quatro dispositivos do prédio exibe um horário diferente. Para quem desce do Mangabeiras, o dia está sempre mais cedo, mas o fuso horário de quem vem da Cristiano Machado nunca coincide de ser o mesmo.
O relógio da prefeitura não é um relógio qualquer. Cheio de minúcias, o maquinário está tombado pelo patrimônio histórico estadual e é um exemplar ímpar. Seus mecanismos específicos e pesados, produzidos há quase um século, exigem conhecimento técnico avançado, algo escasso em um tempo em que a maioria abdicou do uso de relógios e consulta os horários em telas. A última reforma, realizada em 2009, foi feita por Aldair Ramos, um senhor que comandava uma empresa especializada em reparações de relógios de edifícios antigos. A prefeitura chegou a procurá-lo para resolver o impasse do tempo, mas a Pontos e Ponteiros Ltda. fechou as portas em 2012, quando Aldair faleceu de causas naturais.
Chegaram a fazer contato com relojoeiro da Igreja São José – são vizinhos, afinal – mas o responsável declinou a oferta de trabalho porque não se envolvia com relógios sem sinos. Questão de princípios religiosos. A última solução foi abrir uma licitação para empresas de todo o Brasil que tivessem interesse em consertar o relógio. Resolvidos os trâmites burocráticos, a chamada pública em busca de um fornecedor capaz de resolver a questão temporal na capital mineira seguiu por oito meses sem receber nenhuma proposta.
Foi só em novembro que o senhor João Alves desembarcou na rodoviária de Belo Horizonte com uma caixa de ferramentas nas mãos. O boato entre a comunidade relojoeira era que não existia no Brasil um homem capaz de lidar com os ponteiros do relógio da prefeitura. Quem conseguisse a proeza se tornaria lenda viva e muitos apostavam no potencial do idoso que, por anos, lidou com os relógios do Grande Hotel de Araxá.
Quando entrou no prédio anunciando que chegou para consertar o tempo, os seguranças cogitaram retirá-lo no receio de ser mais um dos lunáticos que tentam invadir as sedes políticas do município. Com muita paciência nos olhos escondidos por trás dos óculos de aros grossos, João explicou seu ofício e sua missão. Uma funcionária pública encaminhou o relojoeiro para o Departamento de Contratações e depois de algumas burocracias municipais, ele estava apto a consertar os ponteiros mais importantes da cidade. O decreto oficial ainda não foi publicado no Diário Oficial do Município, mas aparentemente, as horas em Belo Horizonte em breve irão voltar.
Resolvi compartilhar esse texto - que não é novo nem inédito, já que faz parte de Papéis (meu livro de contos, disponível aqui) - depois que vi na capa do Estado de Minas de hoje, 18 de novembro, que os ponteiros que me inspiraram finalmente receberam os devidos reparos. Será que agora vai?
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