Um objeto é sempre o mesmo objeto até que ele consiga se tornar outra coisa. Veja bem uma mesa: passa de protagonista de música do Nelson Gonçalves à fetiche de design e decoração. Gosto do espaço que elas ocupam nas casas e no imaginário popular: um lugar de conversas e estimas.
Lembro, em um impulso quase imediato, da mesa de mármore da casa da minha avó, no alpendre com vista para o quintal. Nos domingos de frango ensopado no almoço, a família se espremia nos bancos longos e pesados enquanto todos falavam amenidades até quem estivesse sentado na cabeceira anunciar, imediatamente após a última garfada da sobremesa, o horário oficial do cochilo.
Bem perto dali, na casa onde cresci, uma mesa mais compacta e menos tradicional, com pés de madeira modernos e cadeiras individuais pintadas de vermelho foi onde fiz grande parte das refeições da minha infância e adolescência. Já a mesa do meu pai nunca foi muito usada, ao menos por mim. Nossos almoços eram religiosamente no mesmo lugar e seguiam à risca o mesmo cardápio. As horas que passava por lá eram quase sempre no sofá, em frente à TV, assistindo filmes ou partidas de futebol.
Não lamento essa mesa não ter uma história como as outras: um objeto é sempre o mesmo objeto até que ele consiga se tornar outra coisa. A mesa de madeira maciça e as cadeiras com os pézinhos torneados e charmosos se tornaram minhas e até ganharam novas cores e manchas cheias de casos pra contar.
A mesa amarela é uma das primeiras coisas que as visitas reparam e provavelmente uma das minhas posses favoritas. É nela onde experimento as invenções mirabolantes que saem direto da cozinha para o descanso de panelas, faço leituras calmas e tenho conversas bobas ou significativas com quem habita o meu cotidiano. É a mesa amarela, sempre muito fotogênica, que abriga jarros improvisados de flores e a alegria do desjejum com um pão quentinho.
Me pego sentindo certa falta da mesa posta e coberta por mil pratos, copos e canecas, da música alta e das pessoas espalhadas no chão por não ter cadeiras suficientes pra todo mundo. Mantenho o desejo impossível de amontoar muita gente ao redor dessa mesa. Amigos, personalidades, desconhecidos, passantes da rua, vizinhos, o motorista de aplicativo que me deixou em casa, meus autores vivos e mortos favoritos, mas tenho a imaginação livre e só seis assentos disponíveis.
Dessa mesa já saíram desabafos, conversas longas, audições de discos bons e horríveis, livros, e algumas ideias ora mirabolantes, ora possíveis. Ainda que outros cômodos da casa sejam mais adequados e até tenham outros móveis mais confortáveis e agradáveis pra lombar, insisto em seguir ali enquanto vejo pedacinhos de montanha, prédios não identificados em outros ângulos e os respingos de café que se impregnam na mesma medida em que me esqueço de usar os porta-copos.
Escrever é quase como colocar alguém do outro lado da minha mesa.
Da referência a Naquela Mesa até a última frase, tudo tão bonito!