Nina Nina Não #36: Aos cuidados de Leonardo
Foram necessários alguns anos para que Elaine confiasse em compras feitas pela internet, mas quando ela começou a distinguir ofertas imperdíveis de golpes virtuais descarados, sua vida não foi mais a mesma. Depois que se mudou para o interior de Goiás com o intuito de dar aulas na universidade local, ela sentia falta das facilidades que um shopping center poderia oferecer. Não era exatamente uma tarefa fácil encontrar calçados e móveis ao seu gosto em uma cidade de pequeno porte no sertão. A princípio apreensiva, Elaine começou sua jornada digital adquirindo um ferro a vapor e ficou encantada ao receber seu pacote em dez dias úteis na porta de casa. A compra abriu precedentes para que a professora de 63 anos e 1,58m de altura fizesse a maior parte de suas aquisições virtualmente. Toalhas, aparelhos de jantar e até mudas de plantas eram conquistadas com poucos cliques e alimentavam o tempo ocioso que Elaine tinha entre as quatro turmas de administração que assumiu naquele semestre.
Naquela cidadezinha não havia muito o que fazer, mas o salário era bom e permitia uma certa ousadia em relação aos hobbies para ocupar o tempo. Cada mês registrava uma nova aventura no quesito de descobrir novos talentos e afinidades. Primeiro veio o crochê, com uma enorme variedade de agulhas e linhas, depois os quebra-cabeças. Por fim, a pintura. Tudo era comprado online, sem a necessidade de muito esforço além da pesquisa e da escolha, e em pouco tempo, todos os materiais necessários para seu lazer estavam em suas mãos. Foi depois de assistir o programa de culinária do Rodrigo Hilbert em um canal de TV por assinatura que Elaine decidiu que era hora de se arriscar na confeitaria. Procurou uma loja especializada e colocou no carrinho tudo que precisava: formas de silicone, espátulas, bicos decorativos e granulados coloridos. Pensou até em presentear os alunos com cupcakes no fim das aulas para garantir uma boa avaliação do seu desempenho: ninguém resiste a um bom bolinho de chocolate. Com todas ferramentas e matéria-prima em mãos, faltava apenas a grande estrela da gastronomia moderna: a batedeira planetária que Elaine encontrou no e-commerce de uma grande rede de varejo.
Passaram dois, três, quatro dias da data estimada de entrega e nada do produto chegar. Decidida a abrir uma reclamação pelo atraso, Elaine teve dificuldades em encontrar o canal de atendimento ao consumidor e acabava sempre em um limbo de hiperlinks e chatbots que não ajudavam em nada e ainda despertava uma ira que não surgia desde sua adolescência. Quando, enfim, encontrou um número de telefone de contato, a raiva aumentou ainda mais com a passividade do atendimento que não sabia lidar muito bem com a fúria de uma idosa.
Minha senhora, estamos trabalhando para descobrir o que houve de errado com o seu pedido.Por favor, aguarde na linha e anote o seu protocolo de atendimento.
Impaciente, ela esperava e colecionava números de chamados até que desistiu e partiu para medidas mais dramáticas. Cansada de ser tratada de forma displicente pelo seu gênero e sua voz de avó simpática, Elaine teve a ousada ideia de mudar sua identidade online. Criou para si mesma uma nova versão, violenta, afrontosa e com um vasto vocabulário de palavrões. Pediu a um ex-aluno a autorização para usar seus dados e uma foto com cara de poucas amizades no avatar e foi assim que tornou-se Leonardo, um homem careca, peludo e musculoso de 35 anos que talvez tivesse interesses pouco usuais, mas seu aspecto selvagem jamais abriria brechas de questionamentos.
Toda a raiva reprimida por décadas em Elaine era desacorrentada por Leonardo, que não pensava duas vezes em ameaçar acionar o PROCON ou processar grandes corporações caso suas compras viessem erradas ou com algum tipo de defeito. Os e-mails agressivos em tons de ameaça enviados aos fornecedores que confundiam peças ou produtos pareciam surtir efeito. Elaine – ou Leonardo – tornou- -se o terror dos SACs virtuais e não precisou mais usar o telefone. Seus pacotes misteriosamente pararam de atrasar.
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Esse conto faz parte do meu próximo livro chamado Papéis, que traz essa e mais quinze histórias do cotidiano em uma edição super especial que sai no ínicio do mês de abril! O link da venda está aqui e também tenho divulgado nas minhas redes sociais ilustrações e outros detalhes do projeto. Espero que gostem :)
Beijos com cheiro de livro novo,
Nina
(@ninarocha)