Nina Nina Não #34: Os novos Caetanos
No município de Serra da Saudade, no centro-oeste de Minas Gerais, os 781 habitantes contam com um único estabelecimento para resolver as burocracias de nascimento, morte, matrimônio, divórcio e registro de bens. É no Registro Civil de Pessoas Naturais e Tabelionato de Notas que há dezessete anos Gilberto dos Reis trabalha. Sua primeira função no cartório foi de fazer cópias e distribuir documentos na cidade, mas graças a uma organização precisa e metódica, a chefia logo notou seu talento nato para a papelada e o confiou o cargo de escrivão em exercício. Satisfeito com a rápida ascensão, Gilberto ficou responsável por registrar os imóveis e terras dos cidadãos locais, o que fazia com prazer e eficiência.
O trabalho era tranquilo e, vez ou outra, acabava absorvendo as demandas de Araci, colega querida com menos agilidade e juventude que ele, cujos pensamentos mais frequentes estavam sempre relacionados à aposentadoria. Quando o INSS finalmente liberou a documentação do benefício tão aguardado por ela, Gilberto assumiu todas as funções do cartório. O movimento era leve e passavam-se dias sem que alguém aparecesse para autenticar a cópia de alguma escritura. Quantas das 780 pessoas que moravam ali precisavam de burocracias com frequência? Nos tempos de clientela escassa, Gilberto aproveitava a banda larga recém-instalada na região para fazer o download da discografia completa de seus artistas favoritos. Sua personalidade sistemática o obrigava a escutar os álbuns completos por ordem cronológica, sem pular nenhuma faixa.
Nos fones de ouvidos modernos com redução de ruído, presente da sua noiva Sara no último natal, Gilberto descobriu canções preciosas da música brasileira nas obras de grandes compositores e intérpretes. Começou por clássicos como Cartola e Cauby Peixoto e passou por Chico Buarque e Djavan. Mas nenhum deles mexeu com Gilberto como Caetano Veloso. Durante três semanas consecutivas, os vinte nove álbuns de estúdio do artista baiano eram seu único interesse. Do exílio ao experimentalismo, Gilberto se encantou com ritmos, melodias, composições e depois partiu rumo aos arranjos ao vivo e tudo o que fazia parte do universo sonoro do músico.
Fora do expediente, Gilberto não conseguia falar em outra coisa. Doutrinava os amigos que só conheciam Leãozinho e por pouco não foi expulso do encontro semanal da família por colocar London London durante um churrasco. Encontrou em um sebo on-line uma biografia não autorizada e após conhecer mais a história de Caetano, tornou-se ainda mais fã. Em seguida, encomendou uma a edição comemorativa de Verdade Tropical. Uau. Sara até cogitou até ter um pouco de ciúmes, mas ao longo dos quatro anos de relacionamento, nunca havia presenciado o companheiro tão empolgado. A paixão era saudável e incentivava Gilberto, que nunca tinha sido de muito entusiasmo com nada.
A idolatria seguiu sendo sadia só até chegar em seu trabalho. Cansado dos seus fones de ouvido, o escrivão propôs aos chefes a compra de caixas de som para tornar a espera dos clientes mais agradável. A proposta foi recebida com ressalvas - cartório é lugar de burocracia, não de música -, mas quando Gilberto ofereceu-se para arcar com os custos da instalação, tudo foi acertado. Um som ambiente com o barulho do mar ou de pássaros cantando não faria mal a ninguém. Mas as músicas new age meditativas nunca alcançaram os alto-falantes do cartório e os habitantes da pacata cidade precisaram se acostumar a fazer seus pedidos de separação ao som de A Luz de Tieta, o que era até aceitável diante da próxima extravagância de Gilberto.
Todos os bebês registrados no ano de 2018 em Serra da Saudade ganharam, sem pedir, um nome composto na certidão de nascimento. A cidade logo ficou repleta de Joãos Caetanos, Robsons Caetanos, Felipes Caetanos e Eduardos Caetanos. Um casal chegou até a ameaçar processar o cartório mas desistiram por gostarem da sonoridade de José Caetano Santos. O sonho de Gilberto tornou-se registrar um Caetano para chamar de seu, e Sara, que há tempos esperava o momento certo para a maternidade, embarcou na missão. Depois de oito meses de tentativas, o teste positivo finalmente chegou e a hora de colocar mais um Caetano no mundo ficava cada vez mais próxima.
A primeira frustração veio no pré-natal, quando Gilberto descobriu que seria pai de uma menina. A decepção fez parte de sua rotina por alguns dias, até ele encontrar uma nova forma de homenagear o ídolo e debruçou-se em suas músicas para encontrar um novo nome. Se tivesse sido tocado por Chico Buarque, tudo seria mais fácil com Luiza, Bárbara, Beatriz, Angélica. Mas com Caetano era diferente e os nomes propostos por Gilberto foram imediatamente vetados. Sara não daria luz a Tieta ou Odara, que com certeza sofreria bullying dos colegas no Ensino Fundamental. Gilberto ainda tentou e insistiu em Maria Bethânia, Claudinor e até Maria da Graça. Mas Catarina Reis dos Santos nasceu no dia 4 de novembro de 2020 e foi registrada em Dores do Indaiá, município vizinho de Serra da Saudade, no dia seguinte. Sara não confiou em Gilberto para fazer a certidão de nascimento da própria filha sem correr o risco do seu nome ser Alegria Alegria dos Reis.
Beijos tropicalistas,
Nina
(@ninarocha)