Nina Nina Não #32: Desejo e amarração
Dona Olga nunca falha. Há trinta e três anos trabalhando para abrir os mais diversos caminhos que o ser humano é capaz de trilhar, foi só depois de se apaixonar pelo segurança de um cinema em Brasília que estabeleceu-se de vez na Asa Norte. Na capital há doze anos, Olga lê cartas, búzios, tarô e faz limpezas para os males que padecem o corpo e a alma. Na sala de vinte e quatro metros quadrados que cheira a mirra e fumaça ela já fez todo tipo de previsão. Nascimento, morte, doença do fígado, escândalo de corrupção e transplante de órgãos. Em sua carta de clientes, Dona Olga conquistou de donas de casa à importantes políticos, que por motivos de sigilo, ela não pode revelar, mais garante: muita gente importante já circulou pelo oitavo andar do edifício Alberto Peres. Todos extremamente satisfeitos com os serviços prestados por ela. Sua rede de contatos aumentava a cada semana, e garantir um horário com Dona Olga exige uma espera de, no mínimo, quatro semanas.
Pelo menos foi esse o tempo que Débora, bacharel em direito pela UNB e aluna do MBA da FGV, aguardou por um atendimento. Depois de ouvir falar muito bem de Dona Olga em um grupo do WhatsApp, a advogada decidiu buscar uma solução rápida e eficiente para o flerte com Flávio, da Contabilidade, que já durava 8 meses e não ia a lugar algum. Flávio e Débora sempre conversavam no refeitório da empresa e trocavam olhares entre as baías do escritório. Na última festa de fim de ano, depois de três vodkas com Red Bull, Débora teve certeza de que estava apaixonada, mas por traumas e timidez, nunca teve coragem de admitir em voz alta. Tentou sair algumas vezes com Robson da academia e João do condomínio. Se divertiu o suficiente, mas nenhum deles tinham um sorriso charmoso como o de Flávio e era difícil competir com uma expectativa perfeita.
Cansada de esperar e sem ousadia o suficiente para agir, Débora procurou Dona Olga para trazer a pessoa amada, do jeito que ela sempre quis. Com hora marcada, confidenciou a vidente todos os aspectos da relação platônica que a levavam a acreditar que aquela era a escolha de uma vida e não apenas um desejo momentâneo. Flávio era atencioso, tinha boa aparência e uma inteligência mediana, de forma que não a contestaria em dilemas cotidianos como a dúvida entre biscoito e bolacha. Débora sonhou com uma casa de dois andares, um cachorro adotado e jantares em família onde, com muita boa vontade, ele se ofereceria para fazer o Imposto de Renda de seus pais. Olga escutou a jovem pacientemente, leu as cartas e decidiu o melhor trabalho para ajudar a nova cliente. Recomendou certos rituais e garantiu que logo menos a amarração estaria feita.
E não demorou: em menos de uma semana, Flávio criou coragem e convidou Débora para tomar um café depois do expediente. Ela aceitou prontamente e sentiu-se a mulher mais realizada do Distrito Federal. O brilho nos seus olhos e o rubor em suas bochechas não escondiam que ela estava apaixonada e sendo sim muito amada. Mas alegria durou pouco: o ser amado estava longe de ser aquilo que ela idealizou. Em poucas semanas, Flávio se mostrou um homem relapso, preguiçoso, viciado em fast food e sem muitas projeções além de jogar videogame com os amigos no fim de semana. Não demorou para Débora se arrepender dos meses que gastou desejando um homem que não correspondia a suas projeções de futuro.
Como boa conhecedora de seus direitos e deveres civis, Débora foi atrás das medidas legais para desfazer o serviço entregue por Dona Olga. Ligou para a fornecedora e explicou o que estava acontecendo. Débora se arrependeu e gostaria de desfazer a amarração e garantir o seu dinheiro de volta. Em anos de profissão, Dona Olga nunca havia enfrentado uma situação parecida e disse que nada era tão simples assim. Novos trabalhos seriam necessários e eles poderiam sim ser feitos diante de um pacote de seis sessões. Débora não aceitou a venda casada e recorreu aos seus conhecimentos jurídicos para intimidar Dona Olga. Uma mulher que lidava com as nuances mais obscuras do mundo físico e espiritual não se constrangia facilmente com ameaças. Até que as primeiras notificações do Programa Estadual de Proteção ao Consumidor chegou, defendendo que sim, pelo tempo decorrido após a transação, Débora tinha direito a se arrepender do serviço contratado e exigir o pagamento de volta.
Dona Olga já havia trabalhado com pagamentos após o resultado, trocas, permutas, mas nunca com devoluções. Depois de pedir um dos seus clientes para defender o seu processo alegando que a natureza de seus trabalhos não era de um contrato qualquer e que o que ela havia prometido tinha sido entregue, Dona Olga venceu o processo judicial que se arrastou por mês, drenou sua energia mística e fez com que a senhora chegasse a conclusão de que o melhor a fazer era se aposentar a aproveitar a vida longe de tantos desejos e decepções. Ela nunca falha, mas já está farta das exigências do mercado.
Beijos amarrados,
Nina
(@ninarocha)