Nina Nina Não #30: Tombai e comei
Desde que tirou a habilitação do tipo E no Detran, José Augusto sonhou em dirigir um caminhão bitrem. Depois de anos levando cargas de no máximo seis toneladas de norte à sul, o motorista decidiu arriscar e pedir na coordenação da transportadora em que trabalha há quinze anos a troca por um veículo mais robusto. Admirado pela equipe por fazer entregas ágeis e sem muitos desvios de rota, seu pedido foi prontamente atendido. O dia em que recebeu as chaves do novo veículo que comandaria nas estradas foi um dos melhores de sua vida, perdendo, para falar a verdade, até para seu casamento e o nascimento da primeira filha, o que trouxe certo desconforto à família.
A primeira coisa que José Augusto fez quando tirou o caminhão da garagem foi procurar uma placa para o para-lamas que combinasse com suas crenças. Ele era um homem simples e sem muitas vaidades, mas já que iria atravessar o país fazendo o frete de diversos itens, que pelo menos o fizesse transmitindo mensagens importantes, como um verdadeiro caminhoneiro. Encomendou com um colega uma bonita placa em lataria com nome em letras cursivas de seu maior ídolo: Allan Kardec. Foi ainda criança que, incentivado pela família, José Augusto começou a frequentar centros espíritas e se encontrou na religião. Quando mudou-se para Tangará da Serra, no Mato Grosso, foi às reuniões da Casa Espírita Menino Jesus, onde fez os primeiros amigos na cidade e sempre se pôs à frente das atividades que procuravam desmistificar a doutrina na comunidade.
Allan Kardec era um exemplo de espiritualidade e inteligência para José Augusto. Nada mais justo do que carregar seu nome por onde quer que fosse. Na traseira do bitrem, Allan Kardec conheceu o Ceará levando sacas de laranja e o Rio Grande Sul transportando leite em pó. Na rodovias que interligam as regiões do país, Allan Kardec ajudou na segurança do caminhoneiro e o protegeu de saques, acidentes e falhas mecânicas de diferentes naturezas. Mas a proteção não pôde resguardar José Augusto de tudo.
Com a boa safra de café prevista para o ano, a transportadora decidiu procurar reforços. Um dos colegas contratados para ajudar nas demandas foi Nelson dos Santos, um motorista cauteloso e até simpático com quem José Augusto dividiu algumas rotas e tentou criar uma relação de amizade. Não funcionou.
Nelson dos Santos, nascido no interior de São Paulo, foi criado no catolicismo. Desiludido com a religião, foi sua primeira esposa que o apresentou à Assembleia do Reino de Deus, onde foram batizados e celebraram o matrimônio que, infelizmente, não durou. Nelson seguiu frequentando os cultos e ainda hoje é um dos fiéis mais fervorosos da igreja. Para manifestar a sua fé, ele carrega em seu caminhão o trecho de sua canção de louvor favorita no para-lamas: “Jesus Cristo Rei dos reis”. Quando descobriu a espiritualidade de José, o mínimo de coleguismo que eles haviam estabelecido durante a breve convivência evadiu em instantes. No meio do café da tarde, esbravejou que não confiava em quem acreditasse em espíritos e desde então a troca de indiretas, farpas e cutucadas entre os dois tornou-se constante. Um zombava da reencarnação enquanto o outro fazia chacota dos rituais de possessão. O encontro entre José e Nelson, onde quer que acontecesse - na estrada ou no pátio da empresa - era momento certo de tensão e faíscas.
Ambos tentaram em vão converter novos fiéis para o lado que julgavam ser o melhor. Nelson até convenceu um ou outro motorista a participar de alguns cultos, mas quando souberam que teriam que contribuir com dízimo, desistiram sem remorso. A situação ficou complicada em uma viagem onde os dois foram escalados para levar pacotes de pão de forma ao interior de Minas Gerais. Dividindo a mesma rota e as mesmas paradas, a viagem foi agoniante e cheia de acaloradas discussões na mesas do refeitório dos Postos Chefão.
Foi numa madrugada na BR135 que os rivais decidiram pôr fim às intrigas que roubava a paz que a espiritualidade tentava com tanto fervor levar a suas existências mundanas. Fizeram um acordo: aproveitar rodovia deserta para apostar quem chegaria primeiro no município de Montalvânia. Quem vencesse teria que frequentar, calado, os rituais religiosos do outro durante o período de um ano. Nelson e José colocaram no volante e no acelerador tudo o que acreditavam. Ignoram as placas de sinalização de velocidade máxima, os radares e quase até as leis da física. Não tiveram medo: alguém estaria tomando conta de sua proteção.
O destino final nunca chegou: a 120km do município que escolheram como linha de chegada, o caminhão de Nelson tombou na pista e derrapou na estrada, impedindo a passagem de carros nas duas mãos da rodovia por três horas e meia. Com o tombo, toda a carga se espalhou próxima a uma comunidade rural, e não demorou para surgir quem tentasse abastecer a despensa com um pouco das muitas toneladas de alimento embaladas em plástico que cobriam o asfalto quente. Ninguém se machucou, ambos reconhecem o perigo da rivalidade e hoje agradecem diariamente à proteção divina da ocasião. Nunca mais discutiram, mas José conta para todos que ele foi o grande vencedor: o pão da vida, que oferece o conforto espiritual mundano, estava pelo menos sendo repartido.
Beijos da estrada,
Nina
(@ninarocha)