Nina Nina Não #29: O barbeiro do Centro
José Francisco nasceu no interior de Minas Gerais em 1891 e aos vinte e um anos, por vocação e simpatia, ingressou na vida pública. Foi só depois de quase um século que seu sobrenome tornou-se nome de prédio: o Edifício Bias Fortes, localizado na avenida homônima em Belo Horizonte, conta com 240 apartamentos, espalhados por quatro blocos conjugados.
Para atender as necessidades dos 978 moradores que fazem residência naquele endereço, uma administradora de condomínios foi contratada em 2008 e realizou importantes melhorias desde então. Uma delas foi a admissão de porteiros escalados em turnos de 12 horas para garantir o conforto e a segurança dos habitantes do prédio. A decisão entre os condôminos adimplentes foi praticamente unânime: a maioria concordou que o centro da cidade está tornando-se cada vez mais hostil e que alguém em alerta seria sim relevante para a qualidade de vida de todos.
Geraldo André também nasceu no interior do estado, mas jamais pensou em se candidatar a nenhum cargo político. Ficou sabendo por um vizinho sobre a vaga para porteiro no Edifício Bias Fortes, estava desempregado e, mesmo que seu trabalho dos sonhos não fosse em uma portaria, o salário com adicional noturno era atraente. Decidiu tentar. Já havia feito um curso técnico de segurança e a formação contou pontos a seu favor. Desde o início de 2009, ele é o porteiro da noite nos dias pares e é muito querido por todos moradores.
Geraldo abre a porta do elevador para as senhoras de idade e ajuda com as compras mais pesadas. Sempre solícito, faz questão de responder os cumprimentos que chegam dos moradores mais bem humorados com um sorriso discreto que entrega um pouco de sua timidez. Por ser um homem de poucas palavras, pouco se sabe sobre Geraldo. Isso não o impede de ser uma pessoa muito bem estimada por todos - exceto por um casal do sétimo andar que queria carregar um sofá de quatro lugares no elevador social durante um dia de semana e brigou com o porteiro.
Com o coronavírus, a administradora do Edifício Bias Fortes optou por dispensar todos funcionários por algumas semanas até a situação ficar mais estável. A rotina no prédio começou seguindo bem, mas não demorou para que o senhor do 301 B começasse a pegar acidentalmente o jornal do 601 A e uma das idosas do bloco C deslocar o quadril ao tentar subir sete degraus com a feira sozinha. As coisas não melhoraram e um grande volume de reclamações fez a empresa repensar a decisão e manter a portaria funcionando em horário comercial com apenas dois profissionais em escala reduzida.
Geraldo foi convocado e retornou sem contestar as medidas de prevenção sugeridas pelo condomínio. O salário de porteiro era indispensável para manter suas contas em dia, juntar um dinheiro para investir em um curso e abrir o seu negócio daqui uns anos. Ele era de fato muito bom em atender a campainha e receber encomendas, mas também pensava no futuro e ninguém imaginava qual era o verdadeiro talento daquele homem misterioso escondido atrás da bancada da portaria.
Só após os primeiros meses da pandemia que Geraldo decidiu revelar aos moradores do Edifício Bias Fortes suas verdadeiras habilidades, ganhando admiradores em todos andares por sua agilidade e discrição. Depois de escutar reclamações do morador do 704 D sobre a dificuldade de manter a autoestima masculina sem um corte de cabelo decente, ele decidiu pôr um fim ao drama do jovem e o convidou para um passeio rápido ao almoxarifado do prédio munido de uma navalha extremamente afiada.
O rapaz ficou apreensivo com o quarto escuro e pensou até em acionar um dos seus colegas de república caso houvesse uma eventual emergência. Ninguém sabia as intenções de Geraldo. No cômodo abafado, ele sentou o garoto em uma cadeira enferrujada e colocou suas ferramentas de corte em ação. O porteiro foi rápido e não deixou tempo para contestações. Em quinze minutos, terminou o trabalho. Com os salões de beleza fechados pela prefeitura, a procura por cortes clandestinos é cada vez mais intensa. Geraldo atende atualmente no subsolo do Edifício Bias Fortes, é o barbeiro mais requisitado do Centro e adverte seus clientes com seriedade: se quiser com risquinho, é dez a mais.
Beijos capilares,
Nina
(@ninarocha)