Nina Nina Não #28: Clube subzero
Inês não é uma mulher de muitos compromissos. Depois que aposentou, aos 57 anos, sua rotina foi tomada pela produção de pães de queijos recheados e breves passeios com Bingo, o vira-lata que a filha mais nova abandonou no apartamento da mãe quando se mudou para o Rio de Janeiro. Prepara arroz e feijão todos os dias, quiabo nas segundas e purê de batatas nas quintas. Às oito da manhã e às quatro da tarde, no rádio de pilha estrategicamente posicionado na bancada da cozinha para rezar enquanto passa café, escuta os sermões do Padre Reginaldo. Faz orações por saúde para a família e dinheiro para quitar as dívidas.
Seus rituais se iniciam só depois do último amém do sacerdote. Inês vai ao armário embutido na suíte e escolhe um bom vestido, discreto e sem muitas estampas. Passa lápis nas pálpebras e aumenta o volume dos cílios. A melhor parte do seu dia sempre é interfonar para Antônia do 503 e Marta do 104, e enfim partir para o bar no quarteirão de cima do prédio onde mora. O trio passa a noite jogando cartas e distribuindo informações privilegiadas sobre a vida dos moradores do bairro. Gregório, o dono do estabelecimento, já deixa um lugar reservado para as fiéis clientes, carinhosamente apelidadas de minhas meninas. Quem precisa falar com alguma delas de segunda à sábado, entre as seis e as dez horas, já não liga em casa: elas estão sempre no mesmo lugar.
Impedida de sair há quase três meses, ela se sente enclausurada e um pouco revoltada. Não passeia com o cachorro, não vai ao clube e nem confere as ofertas nos folhetos do supermercado que sempre ficam largados na portaria do prédio. Uma mulher de sua idade sendo privada do direito de ir e vir? A filha, que não conseguiu dispensa do trabalho, liga diariamente e insiste. “A senhora não tem idade pra sair de casa, peloamordedeus, sossega”. Nos primeiros dias, Inês não deu ouvidos e continuou frequentando o boteco até perder o apoio popular de suas companheiras de copo, mais neuróticas e preocupadas. Parece que a coisa é mesmo séria. Na semana seguinte desistiu de vez da sua via sacra. Gregório acatou o decreto municipal que proíbe o funcionamento de bares e restaurantes por tempo indeterminado e fechou as portas.
Foram dias difíceis na vida de Inês. Com 63 anos, isolada em um apartamento não bate muita luz - um erro de investimento do ex-marido, em sua opinião -, se viu obrigada a aumentar sozinha a dose do calmante indicado pelo psiquiatra. Longe da família, que se espalhou pelo país ao longo dos anos, e sem ter muito o que fazer, a aposentada precisou reinventar. Tentou tricô, decoupage e cinco novas receitas de roscas de coco. Ficou entediada em menos de uma semana. Sua salvação foram retalhos de chita que sobraram das fantasias de quadrilhas de décadas atrás e uma máquina velha de costura que estava guardada no armário.
Inês orgulhosamente confeccionou máscaras em dupla face e decoradas com flores vermelhas e amarelas. Presentou as vizinhas com um par para cada. Ela própria usa o acessório com um vestido preto de botões aveludados, olhos pintados e acredita que a combinação funciona muito bem. Antes das seis, se arruma para subir e descer dois lances de escada carregando latões de Antarctica Subzero dependurados nos ombros. O síndico a convenceu a não confiar no elevador. Protegidas, as amigas se reúnem todos os dias, cada vez em um apartamento diferente. Gregório implementou um sistema de entregas e manda até um chorinho de cachaça Salinas para fechar a noite e manter a clientela feliz. Juntas jogam buraco, escutam Ivan Lins e bebem enquanto assistem a reprise da novela das nove. Inês volta para casa e sem a ajuda de pílulas prescritas, dorme, mas não muito: tem medo de perder a hora. Ela não é uma mulher de muitos compromissos, mas precisa acordar cedo para escutar a missa das oito.
Via Brokenheart Gallery
Beijos geladinhos,
Nina
(@ninarocha)